8.5.12

"a pele onde eu vivo"

Depois de uma noite de lágrimas mal engolidas, sufocos em forma de grito e amargos na boca, acordamos com os olhos ainda secos e baços e com o corpo colado aos lençóis. Contraditoriamente ao nosso estado de espírito, todo o mundo que está para lá do nosso distanciamento do mesmo começa, dispara, acelera, marcha a passos largos e velozes. Tentamos fechar os olhos por mais uns míseros segundos e tentamos adormecer sem nos sentirmos cobardes por isso, por fugirmos do duro e do real, e tentamos não nos sentir ainda mais sós por nos queremos ausentar de tudo aquilo que em nós mexe e nos faz cócegas incomodativas. Para lá da porta do quarto e da janela da varanda, todo o Mundo acorda, cada um ao seu ritmo, o dia começa, os ponteiros tilintam sempre na mesma direcção e as pessoas cruzam-se nas ruas sem cruzarem um único olhar, correm atrás das suas vidas sem pensarem naquele pedinte que lhes esticou a mão ou naquela criança que viram a chorar perdida ou naquele rapaz a tocar guitarra que até lhes proporcionou uma musiquinha agradável. As outras vidas, lá fora, cá dentro, dos mais ou dos menos próximos, parecem acontecer e avançar à velocidade da luz. E nós continuamos ali, refugiados no escuro e no (des)conforto, enquanto ouvimos a água do chuveiro a correr e a máquina do café a funcionar e os passos de alguém apressados. Relembramos o dia anterior, um dia não, um dia em que nos sentimos mal connosco próprios, um dia em que não nos sentimos nós no nosso corpo e nos apeteceu rasgá-lo em frente ao espelho, um dia em que sentimos que não cabíamos dentro de nós próprios e nos apeteceu explodir todas aquelas tristezas que calámos durante uma vida inteira, um dia em que perdemos o chão e os próprios pés para caminhar, um dia em que perdemos a nossa âncora, um dia em que sentimos que nem as palavras podiam dizer tudo aquilo que berrava dentro de nós, um dia em que os nossos olhos verteram água salgada por uma palavra bonita em vez de uma medonha, um dia em que sentimos necessidade de ouvir alguém porque não conseguimos nós falar das coisas mais íntimas, um dia em que nos apeteceu apanhar o comboio e sair na praia para escrever na areia os nossos medos mais profundos, um dia em que nos apeteceu pegar numa pedra, pensar nos buracos mais fundos que vivemos e atirá-la ao rio, um dia em que nos apeteceu encontrar a chave do nosso velho diário para o rasgar, um dia em que nos apeteceu arrancar do nosso corpo aqueles que um dia já fizeram parte de nós, um dia em que sentimos que nem o sol nos poderia alegrar o dia, um dia em que quisemos deitar os nossos mais queridos e companheiros livros pelo chão e pisá-los como se nada importassem, um dia em que quisemos queimar as fotografias da infância que temos guardado porque guardamos sempre tudo, um dia em que quisemos deitar numa fogueira todos os presentes que aquele alguém nos deu um dia, um dia em que nenhuma cadeira confortável nem nenhum psicólogo nos poderia ter feito exprimir o que estava dentro de nós, um dia em que Lisboa se tornou feia e cinzenta mesmo com uma luz nada habitual, um dia em que nos sentimos mais pequenos que um pequeno nada, sem sabermos bem porquê. Um dia em que tudo nos pareceu virado de pernas para o ar sem existir nada de agradável nisso, um dia em que não coubemos dentro de nós próprios e não conseguimos, porém, sair do limbo, um dia em que o Mundo nos pareceu perigoso demais, um dia em que não descobrimos o porquê do turbilhão dentro de nós. E quando finalmente nos levantamos e vamos, também nós, à nossa vida, tentando agarrar a filosofia que hoje é um novo dia, pegando em qualquer coisa para vestir e dando um jeito rápido no cabelo só porque sim e tentamos mostrar alguma auto-confiância, damos de caras com alguém que amamos, alguém que nos conhece como a palma da sua mão, que nos pergunta o que se passa. Sentimo-nos egoístas (porque, afinal, nós ainda temos amor), e respondemos -Nada quando o que desejamos, no fundo, é dizer -Tudo.


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